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DAÇÃO EM PAGAMENTO À LUZ DA BOA-FÉ OBJETIVA

A dação em pagamento é o instituto jurídico positivado no atual Código Civil brasileiro, de origem eminentemente privada, posto que em regra objetiva solucionar as controvérsias advindas de negócios jurídicos particulares, em suma celebrados em dada relação bilateral, instaurada no pleno gozo da autonomia privada, que por sua vez, é o vetor hermenêutico para compreensão das normas, pelo intérprete civilista.

Nesse diapasão, abarcando os princípios da concreção e da realizabilidade, quis o legislador ordinário instituir no Direito das Obrigações – regime jurídico privado das relações econômicas – diversas formas de concretização do direito substancial, estatuindo institutos jurídicos para alavancar a função social dos contratos, inclusive no escopo de atingir o resultado útil da prestação jurisdicional, no caso de demanda judicial visando a resolução do pacto firmado, bem ainda para promover a equidade diante do conflito de interesses direcionados ao Poder moderador (Órgão julgador), visto que este detém o poder revisional na ponta da caneta, mas logicamente de modo integrativo, sem desprestigiar, ou desqualificar a livre declaração da vontade emanada pelos partícipes da relação jurídica particular. Assim, sob o manto da boa-fé objetiva, pergunta-se, portanto, se o instituto da dação em pagamento pode ou deve ser um direito subjetivo do devedor?

Veja que é lícito, determinável e possível ao devedor propor solução diversa para resolução do vínculo contratual originário, mormente porque “com a interpretação segundo a boa-fé procura-se definir justamente o conteúdo do acordo firmado entre as partes (...) pesquisa-se a razoável expectativa de uma parte sobre o acordado com a outra”.[1] Nesse ínterim, a figura jurídica da datio in solutum, utilizada primeiramente pelo Direito romano, “visa obter alteração do objeto da obrigação”.[2] Deveras, é uma forma de extinção da obrigação, pelo pagamento indireto, tendo em vista a ocorrência da necessária substituição do objeto obrigacional por outro, ou seja, pactua-se nova forma de pagamento, vale dizer, novo acordo, visto que diferente o objeto postulado pelo credor inicialmente.

Destarte, reza o princípio da legalidade que somente a lei poderá obrigar alguém a fazer, ou deixar de fazer alguma coisa, e, corroborado pelo ditame civilista de que “o credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa”,[3] ver-se-á que a dação em pagamento somente será perfectibilizada após o aceite expresso pelo credor, e nesse mesmo sentido caminha a jurisprudência dos Tribunais pátrios.

Assim, o acordo liberatório do devedor ocorrerá por meio de variadas formas, visto que a substituição do objeto da obrigação opera-se não apenas por coisas, ou valores, mas também por fatos, ou abstenções. Portanto, o devedor do objeto da obrigação pode e deve assegurar o adimplemento contratual de modo diverso do que fora procurado pelo credor, mas evidentemente não se trata de um direito subjetivo do devedor, posto que “se o credor consentir, poderá ser dada em pagamento alguma coisa que não seja dinheiro em substituição do que se devia”,[4] ou seja, o consentimento do credor é conditio sine qua non à realização do novo pacto que disporá sobre a substituição do objeto da obrigação previamente entabulada, nos exatos limites da autonomia da vontade humana.

Destarte, “o credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida”,[5] ainda na seara extrajudicial, pois nenhum prejuízo lhe trará. Aliás, não suportará o inadimplemento contratual e as suas consequências prejudiciais, bem como o credor verá satisfeita sua pretensão, sem envidar maiores esforços na busca do adimplemento do pacto, e de outra banda o devedor não suportará os prejuízos com a venda desesperada de bens a preço vil para saldar a dívida, porque pode oferece-los ao credor, pelo justo preço.

Nesse contexto, o regramento das relações particulares (Lei 10.406/2002) prevê que havendo a expressa anuência do credor, e após “determinado o preço da coisa dada em pagamento, as relações entre as partes regular-se-ão pelas normas do contrato de compra e venda”, e vai além restabelecendo o pacto anteriormente firmado no caso de evicção do objeto obrigacional substituído, reforçando, por conseguinte, a segurança jurídica, uma vez que o princípio da sociabilidade, bem como da eticidade, e ainda o inovador princípio da boa-fé objetiva asseguram à sociedade os deveres conexos de probidade e lealdade, observados pelos particulares em todo o desenrolar das tratativas, posto que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos da Liberdade Econômica”.[6]

 

 

    Bruno César Venâncio - Bacharel em Direito.

 

 

 

[1] BIANCA, C. Massimo. Diritto civile cit., vol. III, nº 213, p. 425).

[2] GANULO, Wilson, Novo Código Civil Explicado a Aplicado ao Processo, São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2003, p. 552.

[3] Artigo 313 do Código Civil brasileiro.

[4] BEVILAQUA, Clóvis, Direito das Obrigações. Livraria Francisco Alves, São Paulo: 1950, p. 124).

[5] Artigo 356 do Código Civil brasileiro.

[6] Artigo 421 do Código Civil brasileiro.l.